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por PCD
«[…] Em que ambiente nasce a criança das cidades? Num complexo conjunto de sistemas que significam uma coisa para quantos os concebem e outra coisa para quem os utiliza. Posto em contacto com milhares de sistemas, colocado nos seus terminais, o homem das cidades sabe servir-se do telefone e do televisor, mas ignora como funcionam. A aquisição espontânea do saber está confinada aos mecanismos de ajustamento a um conforto massificado. O homem das cidades tem cada vez menos possibilidade de fazer as suas coisas como lhe der na gana. Fazer a corte, a comida e o amor transformaram-se em matéria docente. Desviado por e para a educação, o equilíbrio do saber degrada-se. As pessoas sabem o que lhes ensinaram, mas já não aprendem por si próprias. Sentem a necessidade de ser educadas. O saber é, portanto, um bem e, como qualquer bem posto no mercado, está sujeito à escassez. Ocultar a natureza desta escassez é a função, deveras custosa, de uma educação multiforme. A educação é a preparação programada para a "vida activa", através do ingurgitamento de instruções maciças e standardizadas fornecidas pela escola. Mas a educação é também a ramificação contínua no fluxo das informações mediatizadas sobre o que se passa: é a "mensagem" de cada bem manufacturado. Por vezes, a mensagem vem escrita na da própria embalagem, é inevitável lê-la. Se o produto é mais elaborado, a sua forma, a sua cor, as associações suscitadas, ditam ao usuário o modo de utilização. Em particular, a educação é permanente, como medicina de temporada, para o administrador, o polícia e o operário qualificado, paradoxalmente ultrapassados pelas inovações no seu ramo. Quando as pessoas se esgotam, tendo que voltar repetidamente aos bancos da escola para receber um banho de saber e segurança, quando o analista tem que ser programado para cada nova geração de computadores, isso acontece porque a educação, realmente, é um bem sujeito à carência. É então que a educação se transforma na questão mais candente para a sociedade e, ao mesmo tempo, na mais mistificante.
[…] Substiruir o despertar do saber pela educação é sufocar o poeta no homem, é congelar neste o poder de dar sentido ao mundo. Por pouco que seja arrancado da Natureza, que seja privado do trabalho criador, que seja mutilado na sua curiosidade, o homem fica desenraizado, manietado, seco. Sobredeterminar o meio físico é torná-lo fisiologicamente hostil. Afogar o homem em bem-estar é agrilhoá-lo ao monopólio radical. Desbaratar o equilíbrio do saber é tornar o homem uma marioneta das suas ferramentas. Empanturrado na sua felicidade climatizada, o homem é um gato castrado: não lhe resta senão a raiva que o leva a matar ou a matar-se.
Sempre houve poetas e bobos capazes de se erguerem contra o esmagamento do pensamento criador por parte do dogma. Metaforizando, denunciam literalmente o vazio cerebral. O humor apoia-lhes a demonstração: o sério é insensato. Eles abrem os olhos para o maravilhoso, dissolvem o certo, desterram o medo e desatam os corpos. O poeta denuncia as crenças, desnuda as superstições, desperta as pessoas, atira cá para fora a força e a chama. As intimidações lançadas pela poesia, pela intuição e pela teoria ao avanço do dogma sobre o espírito serão capazes de conseguir uma revolução do despertar? Não é impossível. Mas, para que o equilíbrio do saber possa ser restabelecido é preciso que o Estado e a Igreja se separem, que a burocracia do bem-estar e a burocracia da verdade se dividam, que a acção política e o saber obrigatório fiquem diferenciados. As palavras poéticas não farão rebentar a sociedade senão metidas no molde do processo político.
[…] Após a Segunda Guerra Mundial a racionalização da produção penetrou nas regiões ditas atrasadas e as metástases industriais exerceram sobre a escola uma intensa procura de pessoal programado. A proliferação do bem-estar exige o condicionamento apropriado para viver nele. O que as pessoas aprendem nas escolas que se multiplicam na Malásia ou no Brasil é, sobretudo, a medir o tempo com o relógio do programador, a avaliar o progresso com os óculos do burocrata, a apreciar o consumo crescente com coração de comerciante e a considerar a razão do trabalho com os olhos do responsável sindical. Isto não é o professor quem o ensina, mas sim o percurso programado, produzido e, ao mesmo tempo, obliterado pela estrutura escolar. O que o professor ensina não tem nenhuma importância desde que as crianças tenham que passar centenas de horas reunidas por escalões etários, entrando na rotina do programa (ou currículo) para receber um diploma em função da respectiva capacidade de se submeterem a ele. O que aprendem eles na escola? Aprendem que quanto mais horas lá passem, mais valem no mercado. Aprendem que tudo quanto uma instituição dominante produz tem um valor e custa caro, mesmo o que não se vê, tal como a educação e a saúde. Aprendem a valorizar a promoção hierárquica, a sujeição e a passividade e até o desvio-tipo, que o professor interpretará como sintoma de criatividade. Aprendem a solicitar disciplinadamente os favores do burocrata que preside às sessões quotidianas: na escola, o professor; na fábrica, o patrão. Aprendem a definir-se como detentores de um lote de conhecimentos na especialização em que investiram o tempo. Aprendem, por fim, a aceitar sem revolta o seu lugar dentro da sociedade, ou seja, a classe e a carreira exactas que correspondem respectivamente ao nível e ao campo de cada especialização escolar.
[…] À medida que a escola alarga o campo das suas especializações, outros serviços nela descobrem a missão educadora. A imprensa, a rádio e a televisão já não surgem unicamente como meios de comunicação, desde que foram deliberadamente postas ao serviço da integração social. Os semanários que desfrutam de expansão, ao encherem-se de informações esteriotipadas, convertem-se em produtos acabados, fornecendo completamente embalada uma informação já filtrada, asséptica, pré-digerida. Esta "melhor" informação suplanta a antiga discussão no forum; a pretexto de informar, suscita um apetite dócil por alimentos já preparados e mata a capacidade natural de seleccionar, dominar e organizar a informação. Oferecem-se ao público algumas vedetas ou alguns especialistas vulgarizados pelo embalador do saber e reduz-se a voz dos leitores à correspondência ou às respostas aos inquéritos, por eles enviadas docilmente.
[…] Quanto às oposições que pretendam alcançar o controlo das instituições existentes, isso confere a estas uma legitimidade de um novo género, exacerbando-se ao mesmo tempo as contradições. Mudar a equipa dirigente não é uma revolução. Que significa o poder dos trabalhadores, o poder negro, o poder das mulheres ou o dos jovens senão o poder de tomar o poder estabelecido? Um tal poder é, no máximo, o de dirigir melhor o crescimento, assim posto em condições de prosseguir o seu curso glorioso, com tão providenciais tomadas de poder. A escola, quer nela se ensine marxismo, quer fascismo, reproduz uma pirâmide de classes de falhados. O avião, ainda que possa ser acessível a um trabalhador por ocasião das férias, reproduz a hierarquia social com uma primeira classe para gente que juga o seu tempo mais precioso do que o dos outros. […]»
[in A Convivencialidade: Lisboa, trad. Arsénio Mota, Publicações Europa-América, 1976]
http://frenesi-livros.blogspot.com/2008_04_20_archive.html
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