Foucault e as formigas
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Foucaultiana de carteirinha, Margareth Rago se surpreendeu com o quanto de comum existe entre o filósofo – que para ela “percebe as múltiplas prisões invisíveis e moleculares em que vivemos” – e a anarquista Luce Fabbri. O deslumbramento com a descoberta determinou inclusive a escolha das epígrafes do livro. A primeira é extraída de um texto da própria Luce: “Todos os nossos conceitos sobre o desenvolvimento da história se encontram em crise. A vida desliza por entre as malhas das construções teóricas, escapa às classificações e nega a cada passo as generalizações e as sínteses. Sentir esta multiplicidade significa sentir o valor que para a vida tem a liberdade (que torna possível a variedade infinita)”. Abaixo, fala Michel Foucault: “O que escapa à história é o instante, a fratura, o dilaceramento, a interrupção.”
Cheira a plágio? Ou pior, considerando que Luce Fabbri teve uma inserção na história humana bem mais modesta que a do pensador francês, teria sido ela quem “chupou” a idéia do outro? Logo de cara, o fator cronológico inocenta Luce: seu texto data de 1952 e o de Foucault, contido em de Dits et écrits, é de 1994. E é óbvio que Foucault não roubou nada da libertária italiana. “Eles nem se conheciam, Foucault não leu nada de Luce. Mas ambos leram Proudhon, Bakunin. É a crítica ao micropoder se impondo nas correntes mais avançadas de pensamento”, defende Margareth.
Naturalmente, a troca de experiências no plano teórico entre autora e biografada é muito valorizada no livro. Mas Margareth não despreza as intercorrências corriqueiras durante os cinco anos de convivência que, em muito, contribuíram para a captação das peculiaridades do “anarquismo de Luce”.
A escritora lembra um episódio, ocorrido durante uma das entrevistas, na casa da italiana: “Eu lhe expressava minha surpresa ao ver minha filha Marina, que eu supunha tão pequena ainda, tecer comentários a respeito de Charles Darwin e de sua teoria sobre a evolução das espécies e a luta pela sobrevivência dos mais fortes contra os mais fracos. Ela [Luce] ouviu-me atentamente e depois sugeriu-me apresentar-lhe Pietr Kropotkin [geógrafo e socialista libertário russo, condenado ao exílio logo que a revolução bolchevique manifestou seu lado autoritário] e seu livro A ajuda mútua, em que este polemiza com o autor positivista e o complementa, apontando para a impossibilidade de sobrevivência das espécies, animais e humana, sem a cooperação e a solidariedade. Em seguida, ela relata uma passagem do livro em que o geógrafo anarquista descreve a maneira pela qual as formigas formam uma bola para conseguirem atravessar um rio: enquanto as de fora morrem, protegem e salvam a vida das que estão dentro”.
São pequenas histórias como esta, temperando uma abordagem apaixonada mas criteriosa, que fazem de Entre a história e a liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo uma obra vital para a compreensão de uma figura que, mais do que lutar pela causa libertária, transmutou a própria vida quase centenária em uma obra-prima de liberdade.
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A autora
Margareth Rago é historiadora, professora livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e colaboradora do Grupo de Estudos Interdisciplinar em Sexualidade Humana (Geish), da Unicamp. Principais publicações: Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar (Paz e Terra, 1985), Os prazeres da noite. Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (Paz e Terra, 1991), Anarquismo e feminismo no Brasil (Achiamé, 1999), Narrar o passado, repensar a história (com Renato Gimenes, Editora da Unicamp, 2000). Vários artigos sobre sexualidade e gênero, como Globalização e imaginário sexual (ou “Denise está chamando”), publicado na edição 159 do Jornal da Unicamp (março de 2001).
*"Entre a história e a liberdade:
Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo"
Margareth Rago, Editora Unesp, 376 páginas
A lição de ‘los perros’
Margareth Rago salienta um dos aspectos da personalidade de Luce Fabri que mais a impressionou: “Em tudo que ela pensava, pensava em como é possível a expe-riência da liberdade. Não é para menos que o livro traz ‘entre a história e a liberdade’ no título. Luce era anarquista não só na dimensão do social, mas também nas suas relações com o cotidiano”. E ilustra com um fato que presenciou na casa da velha combatente: “Eu a estava entrevistando quando os muitos cachorros que ela tinha irromperam sala adentro. Meu primeiro impulso foi sugerir que os espantasse da forma convencional, com umas boas vassouradas. Mas, reconduzindo os bichos só na base da conversa mansa, ela respondeu: ‘No, tendremos que ser libertários también com los perros’”.
Esse “anarquismo visceral” reforça, para a escritora, o quanto é frágil o argumento de que o anarquismo seria a “infância utópica do socialismo científico”. Ela ressalta: “À medida que o marxismo predominou como o grande pensamento crítico do século 20, a leitura que ele promoveu do anarquismo também predominou e casou com a leitura feita pelo liberalismo. Um taxa o anarquismo de ‘romântico’, o outro de ‘caótico’. É a eterna, histórica aliança da esquerda autoritária com o capitalismo. O marxismo se afirma como ‘científico’, mas não podemos perder de vista que ele está falando dele próprio e a gente acaba por comprar o seu discurso”.
Para a biógrafa de Luce, a falência dos estados operários burocratizados é um sinal para se revisar esse conceito. “O anarquismo nunca se colocou como ciência; a revolução depende muito mais do desejo das pessoas e um dos desejos principais é a liberdade”.
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/jun2001/unihoje_ju163pag17.html
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