sábado, 8 de setembro de 2007

DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE


















BRASIL

Direito à Memória

e à Verdade

30.08.07 -
Celso Lungaretti (*)
Desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em janeiro de 2003, as vítimas da ditadura de 1964/85 esperavam do seu governo a postura coerente e firme que acaba de assumir no lançamento do livro-relatório Direito à Memória e à Verdade, uma confirmação oficial de tudo que os historiadores mais respeitados haviam estabelecido e os cidadãos bem informados já sabiam de cor e salteado:
· os militares praticaram a tortura em presos políticos como norma e não como exceção;
· causaram a morte de dezenas que, a exemplo de Vladimir Herzog, não resistiram aos maus tratos;
· executaram friamente outros tantos que, como Carlos Lamarca, haviam capturado com vida;
· estupraram mulheres e chegaram a abusar sexualmente de homens;
· decapitaram e esquartejaram prisioneiros;
· ocultaram os cadáveres que representariam provas de seus crimes.

"Queremos colaborar e contribuir para que a sociedade feche e vire a página desta história de uma vez por todas”, afirmou Lula, acrescentando que ações do gênero são indispensáveis para que esse passado “não se repita”.

Ele prometeu criar uma comissão para obter dos militares informações que possibilitem, finalmente, a localização dos restos mortais de opositores assassinados durante o período em que, segundo o livro, o Brasil esteve submetido ao “terror de estado”.

O presidente foi categórico: “Vamos continuar os trabalhos e daremos uma resposta aos familiares das vítimas. A história do Brasil precisa desta verdade, tal qual ela é".

Foi uma resposta às súplicas de parentes que até hoje não se conformam com o desaparecimento total de entes queridos, como Elzita Santa Cruz, de 94 anos. Seu filho Fernando sumiu em 1974, aos 24 anos, depois de ser preso e torturado.

Ela nunca deixou de lutar pelo esclarecimento do caso, o que lhe valeu, inclusive, a inclusão no grupo de 52 mulheres brasileiras indicadas para o Prêmio Nobel da Paz em 2005. Elzita pegou o microfone durante a cerimônia no Palácio do Planalto e pediu que, antes de morrer, lhe permitissem enterrar o filho.

A dramaticidade dos acontecimentos relatados e das lembranças evocadas provocou lágrimas nos ministros Dilma Rousseff, Franklin Martins e Tarso Genro.

Num aparente recado aos comandantes militares que teriam boicotado o evento, o ministro da Defesa Nelson Jobim disse que as Forças Armadas receberão com naturalidade essa iniciativa do governo em prol da reconciliação do País: "Não haverá indivíduo que possa reagir. E, se reagir, terá resposta".

ONU recomenda transparência – O resgate e disponibilização da verdade sobre a guerra suja que os militares travaram contra os opositores dos regimes ditatoriais latino-americanos são recomendados tanto pela ONU quanto pela OEA, segundo o procurador regional da República em São Paulo Marlon Weichert.

A ONU aponta três obrigações básicas para países que passaram por regimes ditatoriais: reparar os danos provocados, apurar a verdade e responsabilizar os culpados. Na avaliação de Weichert, só o primeiro item está sendo cumprido integralmente pelo Brasil. A dificuldade em avançar-se nos outros dois decorreria de um empenho em se “preservar a biografia de pessoas que estiveram envolvidas com os atos de repressão e com eventuais violações de direitos humanos".

Agindo diferentemente de outros países (como a Argentina, onde cerca de 700 pessoas já foram presas por crimes cometidos durante a ditadura militar), o Brasil “fica nessa situação extremamente desconfortável de proteger pessoas que violaram direitos humanos”, ressalta o jurista.

A produção e lançamento do livro Direito à Memória e à Verdade é um passo significativo na direção certa.

Trata-se da síntese de 11 anos de trabalho da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, ((1995/2006)) complementada por outras informações reunidas pelo secretário especial de Direitos Humanos Paulo Vannuchi e sua equipe.

Traz um resumo de 475 casos: os 339 apreciados por essa comissão (que deferiu 221 pedidos de indenização) e os de outros 136 cidadãos que já haviam sido reconhecidos como mortos ou desaparecidos pela lei 9.140 de 1995. Com 500 páginas e tiragem de 5 mil exemplares, será enviado a bibliotecas, ONG’s e às famílias das vítimas.

Vidas destruídas – Uma novidade foi o reconhecimento, por parte da comissão, da responsabilidade do Estado em casos de suicídio posterior de cidadãos que ficaram traumatizados em função do arbítrio instalado no País. Casos de Maria Auxiliadora Lara Barcellos ((1945-1976) e Massafumi Yoshinaga (1949-1976).

Maria Auxiliadora pertenceu à VAR-Palmares e ficou presa 14 meses, até ser trocada, com outros 69 presos políticos, pelo embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Atirou-se nos trilhos de um trem numa estação de metrô berlinense cinco anos depois, sem nunca recuperar-se dos pesadelos vividos. Deixou relatos pungentes: "Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus cantos mais íntimos”; Antonio Roberto Espinoza e Chael Charles Schreier [detidos juntamente com ela, tendo o segundo morrido sob tortura] estavam “visivelmente ensangüentados, inclusive no pênis, na orelha e ostentando corte na cabeça".

Massafumi foi um jovem militante secundarista que ingressou na luta armada abril/1969 e saiu em dezembro, por inadequação psicológica à vida clandestina. Confundido com o japonês da metralha que participara de várias ações armadas da VPR, passou a ser um dos resistentes mais perseguidos pela ditadura, com foto exposta em cartazes de procurados e freqüentes citações do seu nome na mídia. Tentou levar vida normal sob falsa identidade, trabalhou em colheitas, abrigou-se em barracas de feirantes no Mercado Municipal, mas concluiu que era impossível continuar sobrevivendo nessas condições. Negociou sua rendição, com a condição de não ser torturado nem delatar companheiros.

Utilizado como trunfo propagandístico pelos militares, nunca conseguiu reintegrar-se à sociedade. Foi perdendo a razão, a ponto de acreditar que seus pensamentos estivessem sendo captados nos órgãos repressivos da ditadura. Depois de se jogar embaixo de um ônibus e quase atirar-se de uma janela, foi bem-sucedido na terceira tentativa de suicídio, com a mangueira de um chuveiro.

A autocrítica necessária – Em off, militares criticaram a iniciativa do governo como parcial e revanchista. O ministro Vannuchi, também ex-preso político, respondeu que não se quis “criar uma coisa maniqueísta, de que o bem está de um lado e o mal do outro”. E justifica: “Todos fomos presos na armadilha da guerra fria e o relatório registra que aquelas pessoas que estavam lutando, também mataram”.

Curiosamente, essas mesmas fontes fardadas estariam alegando que tudo isso já é conhecido e não precisaria ser trazido novamente à tona. No entanto, há um intenso trabalho de deturpação da verdade, desenvolvido por apologistas da ditadura na imprensa e na Internet, exatamente para enaltecer carrascos e denegrir suas vítimas.

Então, o que falta mesmo para que essa página vergonhosa da História brasileira seja virada é a autocrítica das Forças Armadas, pois a esquerda, de diversas maneiras, já fez a sua.

Hoje é simplesmente irrefutável que um núcleo conspirador, depois da tentativa frustrada de 1961 e de cuidadoso planejamento conjunto com uma potência estrangeira, conseguiu usurpar o poder em 1964, submetendo as três Armas e o Estado brasileiro aos seus desígnios totalitários.

Não há motivo nenhum para as Forças Armadas continuarem identificadas com esses golpistas, assim como os militares alemães nenhum vínculo têm nem querem ter com o passado nazista.

Se admitirem corajosamente as atrocidades foram cometidas em seu nome e pararem de brigar com a verdade, vão conquistar o respeito dos brasileiros.

Mas, precisam deixar bem claro que Passarinhos e Ustras já não falam em seu nome nem expressam o sentimento dominante na caserna, que hoje é de cumprimento da missão constitucional e respeito pela democracia.
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=29279
* Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político, tendo conhecido pessoalmente cerca de 20 mortos e desaparecidos políticos citados no livro Direito à Memória e à Verdade. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

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