Sessenta e nove anos de vida foram insuficientes para que o Brasil avaliasse a jóia intelectual que detinha. Maurício Tragtenberg, filósofo e cientista político, destacou-se como um grande pensador brasileiro. Que o diga seu amigo, o jornalista e crítico de arte Antonio Candido. "Maurício Tragtenberg é reconhecido nas ciências sociais, mas poderia ter atuado em qualquer ciência humana".
O Prof. Dr. Antônio Ozaí da Silva, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), que estuda há seis anos a produção de Tragtenberg, corrobora a opinião de Cândido e vai além: "Maurício foi um exemplo de cientista, professor e pesquisador. A dúvida e o espírito crítico eram seus companheiros". Para buscar soluções é que Tragtenberg lia ininterruptamente.
Tornou-se um acadêmico mesmo tendo estudado somente até a terceira série do ensino fundamental. Foi autodidata, um apaixonado por livros tantos clássicos como obscuros da literatura e da área de humanidades, que devorava na biblioteca municipal Mário de Andrade, em São Paulo e em sebos.
Curiosamente, despertou seu gosto pela leitura a convite do intelectual brasileiro Florestan Fernandes, que lhe apresentou uma obra de Max Weber quando trabalhavam no Café Pinguim durante a década de 1930, este como garçom e outro como faxineiro. Antônio Ozaí conta que Tragtenberg chegou a dilemas como comprar um livro ou uma calça. Optou pela calça e se arrependeu, quando não mais viu o exemplar na prateleira do sebo.
A compulsão pela palavra escrita somada à facilidade de guardar nomes e citações, fizeram-no ser lembrado por um saber enciclopédico. Para a Profª. Drª. Dóris Accioly e Silva, da UNESP de Marília, e co-organizadora da biografia de Maurício Tragtenberg, o vasto conhecimento do filósofo era presenciado em sala de aula. "Ele não era popular entre os alunos. Falava muito, citava bastante gente e não seguia ordem cronológica nas explicações".
O sociólogo Paulo Roberto de Almeida, membro de um grupo de estudos sobre a obra de Tragtenberg na UEM, foi uma exceção dentre os discentes. Ele relata em um artigo na revista Espaço Acadêmico sua convivência próxima com o professor. "Ele sempre será meu guru intelectual. Adorava suas aulas, sempre pouco frequentadas. Parece piegas, mas ele tinha o dom de cativar as pessoas pelo pensamento". Paulo Roberto também lembra do vício incontrolável do fumo e da distração do mestre. "Esperávamos pelo dia em que ele fumaria o giz e escreveria com os cigarros".
"Fugir dos relatos da vida acadêmica do filósofo para tentar entender Maurício é impossível", confirma a viúva Beatriz Tragtenberg. "Aquele homem era feito de idéias e palavras. Sem elas não viveria, não poderia respirar". O próprio professor confirmou isso, ao colocar a seguinte frase no texto à reitoria da UNICAMP, a fim de realizar concurso para titular da cadeira de Teoria das Organizações: "O que sou é o que me faz viver" (Shakespeare, Henrique VIII). Beatriz recorda com sorrisos do marido.
Adorava o jeito brincalhão e cínico dele e a sua simplicidade. Segundo ela, bastavam ao esposo a filha Lucila Tragtenberg, alguns livros e a companhia da mulher. "Ele fazia questão de me descrever como um apoio para suas inquietações".
Maurício é filho de imigrantes ucranianos, fugitivos da Europa por perseguições políticas. Nasceu em 1929, na cidade de Getúlio Vargas, interior do Rio Grande do Sul. A experiência de crescer entre os camponeses e pequenos donos de terra teve forte relação com seu pensamento anárquico-marxista. Na comunida de camponeses havia uma ajuda mútua entre os indivíduos, sem mestres e aprendizes.
Tragtenberg não acreditava em verdades reveladas, nem em instituições, mas via o questionamento de qualquer autoridade e regra como algo essencial para a formação de uma sociedade justa. "Ele busca sempre um jeito de dizer que era um judeu ateu. Não seguia normas. Só as interrogava", como lembra Sônia Marrach.
Após a perda do pai, mudou-se com sua mãe para São Paulo, onde começou a trabalhar ainda pequeno. Conviveu com operários estrangeiros e participou do Partido Comunista Brasileiro (PCB), do qual foi expulso por refutar o stalinismo. Foi também muito amigo da família Abramo, com quem desenvolveu suas críticas à sociedade capitalista. Ingressou no curso de Ciências Sociais da USP, cursando apenas um ano. Posteriormente, formou-se em História pela mesma universidade.
Um traço muito comentado sobre o intelectual é sua preocupação com a justiça e a igualdade social. Escreveu muitas páginas a respeito dos caminhos a serem seguidos para que fosse construído um país melhor.
Dois pontos se destacaram: o primeiro, muito corrente em suas aulas, era estimular as pessoas a pensarem criticamente, a dialogarem umas com as outras na busca constante por respostas mais apuradas; o segundo era a estrutura de ensino nas universidades (e nas escolas de um modo geral), que não deveria ser uma perpetuação do sistema de dominação capitalista, mas uma libertação do pensamento e da ação do homem.
Tragtenberg ficou conhecido pela pregação que fazia da coerência entre teoria e prática. "Ele combatia o academicismo mórbido. Se a teoria existia, devia ser para melhorar a vida das pessoas", afirma Antônio Ozaí .
Ninguém melhor que Maurício para comprovar a dificuldade de se enfrentar o sistema dominante. Quando os militares tomaram o poder no Brasil, o professor foi confinado à aulas de História Geral para o ensino médio. Seu grau de conhecimento o levou ao ensino superior, tendo lecionado na USP, UNICAMP e FGV. Escreveu artigos nos jornais Folha de S.Paulo e Notícias Populares, neste, contrariando as críticas contra sua integridade. "Foi rejeitado por muitos acadêmicos quando publicava no NP. Diziam que havia se vendido", conta Dóris Accioly.
Porém, para Tragtenberg, escrever em um jornal popular e sensacionalista representava quebrar com o ideal de mídia séria e honesta de alguns veículos. Afinal, "todos têm suas glórias e máscaras", como lembra Antônio Cândido. Com isso, o filósofo afirmava sua integridade ética e sua honra, porque não se moldava à situação para se privilegiar, mas buscava meios de defender seus ideais.
Maurício Tragtenberg foi uma figura que, assim como o filósofo alemão Nietszche, não foram compreendidos plenamente em seu tempo, mas que, sem dúvida, fazem parte do entendimento da sociedade em que hoje vivemos. Maurício não foi daqueles personagens que o nome inspira emoção e o sobrenome razão. Foi o que sempre foi em qualquer lugar e momento: humor auto-depreciativo, firme em suas convicções, mas sempre receptivo a reformular seus saberes, marxista que era, e fanático por estudar e ler.
Fonte: http://www.facasper.com.br/cultura/site/ensaio.php?tabela=&id=154
BLOG DE ÂNGELO CAVALCANTE : http://autogestnacabeca.blogspot.com/
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