Dialética da marginalidade -
caracterização da cultura
brasileira contemporânea
Por João Cezar de Castro Rocha 02/03/2004 às 14:01
especial para a Folha
CONCEITO DE MALANDRAGEM DESENVOLVIDO POR ANTONIO CANDIDO E ROBERTO DAMATTA ENVELHECEU E FOI ATROPELADO PELA VIOLÊNCIA QUE ATINGE TODA A SOCIEDADE
Hoje, 29 de fevereiro, o cinema brasileiro vive um momento histórico com o feito inédito da indicação do filme dirigido por Fernando Meirelles, "Cidade de Deus", para concorrer ao Oscar em quatro categorias: direção, roteiro adaptado, montagem, fotografia. A ocasião deve ser festejada, pois confirma o alto nível técnico alcançado pelas produções nacionais. Na saga do crime organizado, descrita com mão firme por Paulo Lins no romance "Cidade de Deus" [Cia. das Letras], a brutalidade da violência de Zé Pequeno esclarece que a caracterização da cultura brasileira contemporânea exige novos modelos de análise, capazes de estimular uma outra leitura do filme. De igual modo, em 1962, o cinema brasileiro vivia um momento dos mais importantes em termos de reconhecimento internacional, ao conquistar a Palma de Ouro em Cannes, com "O Pagador de Promessas", de Anselmo Duarte -indicado no mesmo ano ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Na cortante história de Dias Gomes, por efeito de contraste, a ingenuidade interiorana da crença de Zé do Burro assinalava a complexidade da vida urbana, tema que se impunha no Brasil, na segunda metade do século 20. Na saga do pagador de promessas, o deslocamento do campo para a cidade é expresso não somente na morte de Zé do Burro, mas também na atração que sua mulher Rosa sente por uma personagem tipicamente urbana, o malandro Bonitão. Esses dois filmes favorecem um paralelo intrigante: do ponto de vista social, não poderia ser maior a distância entre as personagens Zé Pequeno e Zé do Burro. De um lado, o criminoso e sua brutalidade, aterrorizando a todos os espectadores, precisamente pela proximidade com o cotidiano, como se o horror da ação na tela pudesse ser reencontrado na próxima esquina. De outro lado, o camponês e sua simples fé, cativando a todos os espectadores, precisamente pelo caráter anacrônico de que se reveste, como se o passado projetasse uma sombra melancólica no dia-a-dia da cidade de Salvador. Como compreender a distância entre esses dois momentos históricos? Neste ensaio, busco identificar um fenômeno que tem ocorrido nos últimos anos e cujas conseqüências ainda não se podem avaliar plenamente, pois se acha em curso. Porém tal fenômeno deverá provocar uma mudança radical na imagem da cultura brasileira. Refiro-me à passagem da "dialética da malandragem" ao que chamo de "dialética da marginalidade". Para ser mais exato, refiro-me ao choque entre essas duas formas de compreender o país. A meu ver, a cultura brasileira contemporânea tornou-se o palco de uma sutil disputa simbólica. De um lado, propõe-se a crítica certeira da desigualdade social -o caso, entre tantos, do romance "Cidade de Deus", da música dos Racionais MC's, dos romances de Ferréz, "Capão Pecado" [ed. Labortexto] e "Manual Prático do Ódio" [ed. Objetiva]. De outro lado, e ainda que à revelia de seus realizadores, acredita-se no retorno à velha ordem da conciliação das diferenças -o caso, por exemplo, do filme "Cidade de Deus" e do seriado da TV Globo "Cidade dos Homens". Antes de explorar essa disputa simbólica, retornemos ao ano da premiação da saga de Zé do Burro, cuja mescla de obstinação e subserviência foi intuída por Elizabeth Bishop. O trecho é longo, mas indispensável: "Qualquer pessoa em visita ao Brasil concordaria que os brasileiros, os cidadãos comuns, são um povo maravilhoso, alegre, gentil, espirituoso e paciente -de uma inacreditável paciência. Vê-los esperar em filas por horas, literalmente por horas, em filas cujo ziguezague, esticado, equivaleria a duas ou três quadras, só para embarcar num ônibus avariado e dirigido da maneira mais imprudente com destino a suas minúsculas casas de subúrbio, onde as ruas provavelmente ainda aguardam conserto e o lixo não foi recolhido, onde talvez esteja até faltando água -ver isso é assombrar-se com tamanha paciência. Outros povos sob provações semelhantes sem dúvida fariam uma revolução por mês". Essa surpreendente avaliação do povo brasileiro se encontra no parágrafo final de um livro que a poeta buscou esquecer: "Brazil", escrito para a coleção World Library da revista norte-americana "Life". Dois anos após suas proféticas palavras, o golpe militar se travestiu de revolução, instalando a ditadura que controlou o país por duas décadas. Elizabeth Bishop vislumbrou perfeitamente o alvo, mas acreditou demais na proverbial paciência brasileira. Se pudesse reescrever o trecho, provavelmente abandonaria a caracterização macunaímica do povo feliz, embora à espera do nada. Uma nação de Pedros pedreiros esperando um trem que nunca sairia da estação. Ora, os ônibus continuam sendo dirigidos por pilotos do caos urbano; as filas aumentam ecumenicamente, incluindo a dos bancos, dos postos de saúde e das inscrições para os escassos empregos públicos; os bairros de subúrbio permanecem uma distante realidade para os donos do poder. Em suma, no tocante ao respeito pela cidadania das camadas menos favorecidas, 1962 e 2004 são apenas números diferentes. Entretanto hoje os pedreiros estão desempregados, e a hipótese de a estação nunca ter existido deixou de ser um pesadelo kafkiano para transformar-se no surrealismo do nosso cotidiano. Por fim, a violência substituiu a decantada paciência na caracterização da cultura brasileira contemporânea: Zé Pequeno tomou o lugar de Zé do Burro, não resta dúvida. Por isso mesmo, nas últimas décadas, uma sensação crescente de desconforto e de insegurança se tornou parte do dia-a-dia nas grandes cidades brasileiras. Condomínios fechados e carros particulares blindados expressam a reação dos mais privilegiados à realidade dos seqüestros-relâmpago; da neofavela como entreposto do tráfico internacional de drogas; dos comandos do crime organizado aterrorizando bairros de classe média como fazem há décadas nas áreas da periferia. O repertório é variado, pois não deve ser à toa que criminalidade rima com criatividade. Já os órgãos de segurança pública não conhecem rima e muito menos soluções para o problema. Em alguma medida, a chave reside na elaboração de um novo modelo de estudo. Afinal, a análise crítica somente estará à altura da produção cultural contemporânea mediante a criação de formas de abordagem inovadoras. Nesse sentido, as discussões sobre o filme "Cidade de Deus" com base na oposição entre "estética" e "cosmética" da fome pouco contribuem para o entendimento do panorama contemporâneo, pois terminam reduzindo sua novidade a modelos teóricos das décadas de 1960 e 1970. Pelo contrário, proponho outra estratégia com a formulação do conceito de dialética da marginalidade, como forma de descrever a superação parcial, no âmbito da sociedade, da dialética da malandragem. Será então possível mostrar o perturbador maniqueísmo do filme "Cidade de Deus" e, ao mesmo tempo, dar conta de uma produção cultural contemporânea alternativa. Antes, porém, recordemos o modelo anterior. Dialéticas em colisão Na "Dialética da Malandragem - Caracterização das "Memórias de um Sargento de Milícias'", Antonio Candido desenvolveu uma interpretação fecunda da especificidade histórica brasileira, com base num comércio de mão dupla entre os pólos da ordem e da desordem. Tal comércio seria realizado por meio da figura socialmente plástica do malandro -homem de muitos rostos e discursos, cujo gingado rivaliza com sua habilidade de obter vantagem nas situações mais diversas e mesmo adversas. Tal trânsito entre esferas opostas representaria a metáfora da formação social comprometida com o acordo, em lugar da ruptura; com o "deixa-disso", em lugar do conflito. Afinal, o desejo de ser cooptado também define o malandro. No fundo, como Candido esclarece, o malandro aguarda "ser finalmente absorvido pelo pólo convencionalmente positivo". Nesse contexto, destaca-se a definição precisa de Jorge Amado, tal como proposta em "Capitães de Areia": "A elegância malandra, que está mais no jeito de andar, de colocar o chapéu e dar um laço despreocupado na gravata que na roupa propriamente". Pois a roupa talvez esteja puída, assim como o país talvez esteja com as forças sociais esgarçadas, próximas do rasgo. Melhor então desviar os olhos da vestimenta, em gesto análogo ao dos grupos dominantes que desejam esquecer o território por eles explorado. Num importante livro, "Carnavais, Malandros e Heróis", Roberto DaMatta aprofundou ao máximo o veio aberto por Candido, afirmando que o dilema brasileiro residiria na oscilação entre o mundo das leis universais e o universo das relações pessoais, entre a hierarquia rígida da lei e a igualdade morna do convívio. Em seu vocabulário, no Brasil todos aspiram ao estatuto de "pessoa" em detrimento da condição de "indivíduo". Ora, a pessoa possui uma rede de relacionamentos que lhe permite driblar a lei a seu bel-prazer. Já o indivíduo deve curvar-se à perversa universalidade das regras, pois seu universo de relações é limitado. Tudo está dito no provérbio estudado pelo antropólogo: "Aos amigos tudo; aos inimigos, a lei". Por isso, na teoria de DaMatta, o que "faz o brasil, Brasil" é precisamente a construção de uma ordem relacional, isto é, fundada num "mecanismo social básico por meio do qual uma sociedade feita com três espaços pode tentar refazer sua unidade". Esses espaços -o mundo cotidiano, o mundo das festas e o mundo oficial- articulariam um mosaico peculiar, no qual a fratura dá lugar à unidade. O artifício oculta um cálculo interessado: "Há em todos os níveis essa recorrente preocupação com a intermediação e com o sincretismo, na síntese que vem cedo ou tarde impedir a luta aberta ou o conflito pela percepção nua e crua dos mecanismos de exploração social e política". Ora, por que não pensar que a dialética da malandragem e a ordem relacional têm sido parcialmente substituídas pelo seu oposto, a dialética da marginalidade e a ordem conflituosa? Tal substituição tem conseqüências profundas, já que o conflito aberto não pode mais ser mascarado sob a aparência do convívio carnavalizante. A hipótese da emergência da dialética da marginalidade ajuda a compreender o ponto comum de um grande número de produções recentes que desenham uma nova imagem do país; imagem essa definida pela violência, transformada em protagonista de romances, textos confessionais, letras de música, filmes de sucesso, programas populares e mesmo séries de televisão. A violência é o denominador comum, mas a forma de abordá-la define movimentos opostos, determinando a disputa simbólica que interessa explicitar. Disputa simbólica A melhor maneira de expor essa disputa e apresentar uma compreensão outra do filme de Fernando Meirelles consiste em destacar a drástica e nada inócua mudança de ponto de vista na transposição para as telas do impactante romance de Paulo Lins. Por fim, a série "Cidade dos Homens" apenas radicalizou o processo de infantilização do problema da violência e do narcotráfico iniciado pelo filme. Tal processo pode ser mais bem apreciado por meio do estudo do foco narrativo. Roberto Schwarz acertou ao considerar que "o romance de estréia de Paulo Lins (...) merece ser saudado como um acontecimento". Mas terminou circunscrevendo "Cidade de Deus" ao modelo já consagrado: "A ambivalência no vocabulário traduz a instabilidade dos pontos de vista embutidos na ação, um certo negaceio malandro entre ordem e desordem". A nota sobre a complexidade do narrador é importante, porém, o romance evidencia cabalmente os impasses e os limites da dialética da malandragem. Paulo Lins estabelece uma inquietante equivalência entre malandros, "bandidos", "bichos-soltos" e "vagabundos": todos sabem como obter vantagem em tudo. Trata-se de gesto fundamental pouco destacado pela crítica. Em lugar da idealização do malandro, como vimos no trecho de Jorge Amado, Paulo Lins revela o lado oculto de sua ginga, ou seja, esclarece que o malandro somente pode existir à custa de um otário. Ainda mais: o otário, via de regra, é alguém do povo, um entre tantos dos inúmeros excluídos. Malandro que é malandro não cospe para cima. Lembremos o samba de Zeca Compositor: "Enquanto existir otário no mundo,/ malandro acorda ao meio-dia". Estabelecer esse relacionamento estrutural entre as figuras do malandro e do otário é um movimento crítico decisivo. Celebrar a malandragem, portanto, é esquecer que todo Vadinho necessita de uma Dona Flor para explorar, roubar-lhe o dinheiro, agredi-la quando seu desejo não é prontamente atendido e, como ninguém é de ferro, dar-lhe também amor. Não necessariamente nessa ordem, pois tudo depende das urgências dos negócios do malandro. Em princípio, o amor pode sempre ficar para mais tarde. Pode ser inclusive póstumo, por assim dizer. E certamente o malandro nunca leva em conta o problema do outro, como ocorre com o Bonitão em "O Pagador de Promessas". Nos termos de Roberto DaMatta, alguém só se afirma como pessoa quando um número infinitamente maior se vê reduzido ao pálido papel de indivíduo. Daí a importância do ponto de vista da narração no romance. A ausência de uma perspectiva clara de superação da desigualdade social inviabiliza a promessa utópica do morador da Cidade de Deus ser "finalmente absorvido pelo pólo convencionalmente positivo". À revelia de seu desejo, ele é o otário, simples escada para a duvidosa ascensão do malandro. Por exemplo, os políticos engravatados em busca de voto; os grupos dominantes em busca da paz perdida em meio à violência cotidiana. Ora, qual o ponto de vista narrativo do filme "Cidade de Deus"? Em lugar de um narrador difuso e deliberadamente ambíguo, optou-se pela determinação do foco narrativo, atribuído ao adolescente Buscapé. No filme, ele parece ter dois problemas principais: perder a virgindade e deixar a favela graças a um possível emprego como fotógrafo. Essa extraordinária simplificação da personagem corresponde a um propósito duplo: tanto torna o horror da história mais palatável, por acrescentar uma dose de comédia, quanto associa o desejo do espectador de distanciar-se da realidade ao objetivo do rapaz de abandonar a Cidade de Deus. Portanto a escolha do foco narrativo é reveladora. Ou seja, por intermédio da perspectiva de Buscapé, cria-se entre o espectador e as causas do descontrole da violência uma série de mediações interessadas: o olhar do fotógrafo, a própria câmera fotográfica, seu desejo de escapar da Cidade de Deus. Esses inúmeros filtros tornam matéria de espetáculo a insuportável realidade da favela dominada pelo narcotráfico. Se o foco narrativo escolhido fosse o de Zé Pequeno, o público teria consagrado o filme "Cidade de Deus"? O caráter imediato de sua brutalidade recorda o ódio do cobrador, personagem do conto homônimo de Rubem Fonseca, autêntico prenúncio da atual dialética da marginalidade. Estaremos preparados para olhar no espelho e admitir nossa própria indiferença? Daí as mediações que permitem o consumo voyeurista da violência. Exatamente como numa cena de "Carandiru", filme inspirado no livro de Dráuzio Varela e dirigido por Hector Babenco. Após terminar seu plantão, o médico observa a intimidade das celas por meio de pequenos orifícios em suas portas, até que se vê na iminência de passar a noite na penitenciária, pois já havia ocorrido a troca da guarda. Depois de um breve suspense, as portas da prisão são abertas: o doutor respira o ar da liberdade. No fundo, queremos é testemunhar as memórias do cárcere, retornando, porém, ao conforto de lares burgueses. Um "Big Brother" com uma dose adicional de realismo. Além disso, o filme "Cidade de Deus" atualiza clichês, estruturando a narrativa mediante um maniqueísmo difícil de aceitar. Zé Pequeno é transformado em verdadeiro tipo ideal lombrosiano. Ele é o indiscutível bandido mau, perverso, cruel, sem possibilidade aparente de regeneração: um psicopata, em suma. Sua maldade é reforçada pela "bondade" de seu parceiro, Bené, e, claro, pela justa vingança procurada por Mané Galinha, cuja noiva foi violentada pelo incorrigível Zé Pequeno. Não é preciso uma imaginação fértil para recordar a retórica de programas de televisão como "Cidade Alerta", que reduzem a criminalidade a desvios de comportamento individuais. O processo de infantilização dos protagonistas foi radicalizado na série "Cidade dos Homens". A equipe básica de realização do seriado televisivo é a mesma do filme. E a infantilização do foco narrativo parece adequar-se à sensibilidade da audiência do horário nobre. Em lugar de um adolescente, temos agora duas crianças, Laranjinha e Acerola. No primeiro ano da série, discutiam-se as dificuldades típicas da vida na favela, ainda que de forma diluída. Já no segundo ano, em 2003, as aventuras amorosas dos protagonistas ocuparam o lugar de destaque. E os clichês foram servidos sem escrúpulos, incluindo a representação de moças da favela, que, na praia, oferecem-se tanto a estrangeiros (falando um arremedo de inglês deliberadamente ridículo) quanto a jovens de classe média, cuja aparência promete possíveis benefícios econômicos. Tal prática possui nome e, ao que se sabe, constitui ofício dos mais antigos. Difícil compreender o propósito dessas cenas na estrutura narrativa da série. Difícil não se incomodar com um tratamento tão estereotipado e ofensivo. Ou será que se trata de evitar a discussão sobre o problema grave das favelas dominadas pelo narcotráfico por meio da exotização do próximo, demasiadamente próximo? Resta uma última pergunta: qual o propósito da crescente infantilização do foco narrativo e dos protagonistas? Desse modo, os problemas associados ao narcotráfico podem ser deixados à margem e, assim, reencontramos a "humanidade" das relações "mesmo" numa favela. Tal infantilização termina por criar uma favela abstrata, totalmente descontextualizada, como se sua vista privilegiada não passasse de um elemento de valorização imobiliária e todos os barracos fossem apartamentos de cobertura. No segundo ano da série, a favela transformou-se no cenário de uma sensualidade à flor da pele, uma miniatura da imagem turística de Salvador em pleno morro carioca. Em breve, os espectadores de "Cidade dos Homens" abandonarão sua teimosia e trocarão o asfalto congestionado pela vida aventurosa das favelas. Afinal, somos todos brasileiros; logo, filhos de Deus, na cidade maravilhosa. Auxílio paternal Semelhante processo de infantilização do problema aposta na possibilidade de retorno ao modelo da dialética da malandragem, isto é, aposta em algum modo de cooptação. Laranjinha e Acerola são apresentados como dois aspirantes a malandro. Vale lembrar, no entanto, que em latim infante é o "in-fans", ou seja, aquele que não fala, não se expressa, necessitando auxílio paternal. Muito pelo contrário, autores como Paulo Lins e Ferréz, grupos musicais como os Racionais MC's, documentários como "Ônibus 174", de José Padilha, ou "À Margem da Imagem", de Evaldo Mocarzel, entre outras produções recentes, desenham um horizonte muito distinto do silêncio que a infantilização da violência produz. Nesse contexto, a discussão sobre a cena mais violenta do filme adquire inesperado vigor. A meu ver, trata-se da cena em que Buscapé invade a redação do jornal que publicou sua foto do bando de Zé Pequeno. Julga que será morto pelo traficante, assim exposto pela primeira vez. O aprendiz de fotógrafo está visivelmente desesperado e não vislumbra nenhuma alternativa. Nesse instante, o que sucede na redação? Uma jornalista lhe responde no conhecido tom do "você sabe com quem está falando?" e infantiliza o adolescente, silenciando-o. Por sua vez, o fotógrafo consagrado lhe oferece um equipamento mais sofisticado a fim de obter mais e melhores fotos. O espectador espera em vão: não demonstram nenhuma preocupação real com a segurança de Buscapé. A jornalista leva-o para casa, é verdade, mas, acredite se quiser, lá o adolescente enfim perde a virgindade. Essa total insensibilidade e exploração representa o momento de maior violência no filme. Por isso, não resta dúvida, Buscapé agiu corretamente ao desistir de entregar ao jornal uma extraordinária fotografia, na qual flagrava a corrupção de policiais na Cidade de Deus -fotografia que poderia receber um prêmio, confia. Mas, em troca, decide apresentar uma foto menos chocante, porém capaz de assegurar-lhe o emprego e a sobrevivência. Afinal, a jornalista e o fotógrafo dificilmente perderiam seu precioso tempo para defendê-lo dos criminosos de farda, isto é, os policiais corruptos. Podemos ver nessas cenas uma involuntária metáfora do próprio processo de infantilização do foco narrativo presente no filme e na série televisiva? As teorias de Candido e de DaMatta esclarecem formas particulares de mediação social, com base sobretudo no contato pessoal e no universo do favor, moedas correntes no idioma próprio da dialética da malandragem e da ordem relacional. Mas em que medida essas abordagens ainda constituem um modelo de interpretação válido para o Brasil contemporâneo? É indiscutível a permanência da lógica do favor como motor da vida social. Nesse sentido, suas teorias continuam pertinentes, revelando a capacidade das elites brasileiras de apegar-se ao poder político, a fim de perpetuar seus privilégios. Entretanto pouco ajudam no entendimento de parcela significativa da produção cultural contemporânea. Já o modelo da dialética da marginalidade pressupõe uma nova forma de relacionamento entre as classes sociais. Não se trata mais de conciliar diferenças, mas de evidenciá-las, recusando-se a improvável promessa de meio-termo entre o pequeno círculo dos donos do poder e o crescente universo dos excluídos. Nesse contexto, o termo marginal não possui conotação unicamente pejorativa, representando também o contingente da população que se encontra à margem, no tocante aos direitos mais elementares, sem dispor de uma perspectiva clara de absorção, ao contrário do malandro. Mas evitemos repetir o equívoco de idealizar o marginal, recuperando anacronicamente o motivo de Hélio Oiticica, "seja marginal, seja herói", ou o movimento dos poetas marginais da década de 1970. Pelo contrário, deve-se ressaltar a ambigüidade do termo: o marginal pode ser tanto o excluído quanto o criminoso, e até os dois simultaneamente. Ferréz é o autor que mais tem desenvolvido as conseqüências dessa ambigüidade, e em seu romance "Manual Prático do Ódio" a dialética da marginalidade deu um salto qualitativo. Num primeiro momento, muito bem definido, entre outros, pela música dos Racionais MC's e por livros como "Letras de Liberdade" [ed. Madras], obra coletiva de presidiários, e "Sobrevivente André du Rap (do Massacre do Carandiru)" [ed. Labortexto], o impulso principal era testemunhar a sobrevivência em meio a condições as mais adversas, fosse no cárcere, fosse na periferia. Na mensagem direta de "Fórmula Mágica da Paz": "Aqui fala Mano Brown, mais um sobrevivente, 27 anos contrariando as estatísticas, morô mano?". Construiu-se então uma poética da sobrevivência. Num momento posterior, a dialética da marginalidade passou a supor uma explicitação maior das contradições, iniciada por Paulo Lins. Mas não apenas das contradições da dialética da malandragem, mas do próprio sistema social brasileiro, que funciona como uma perversa máquina de exclusão, sob a aparência da falsa promessa de harmonia, na improvável "absorção no pólo convencionalmente positivo" dos moradores das favelas e das periferias. Inaugurou-se então uma radiografia da desigualdade. Em "Manual Prático do Ódio", Ferréz oferece uma lâmina, como ele define seu livro. O corte é fundo e tem como base a inesperada equivalência entre crime, narcotráfico e mundo dos negócios. Para Régis, membro de um grupo que planeja um assalto, trata-se de um trabalho, pois "o que aplicava em armas lhe tomava todo o capital, tinha sonhos mais complexos, uma rotina já definida". É a "profissão perigo", mas que ainda assim permite descrever o crime organizado como uma espécie peculiar de carreira, com raciocínios dignos de um lúcido banqueiro: "Nenhuma fita que fizessem daria mais dinheiro do que o tráfico, o tráfico era um comércio contínuo, vivia fluindo, o crime era instável". Mas, assim como ocorre em "Cidade de Deus", todos os que se envolvem seja com assaltos, seja com o tráfico, terminam mortos ou presos. Seria ao fim e ao cabo uma espécie de moralismo? Certamente que não. Paulo Lins e Ferréz explicitam o verdadeiro salto qualitativo da dialética da marginalidade, superando definitivamente a brutalidade dos cobradores de Rubem Fonseca, pois a violência somente reforça a desigualdade social. De um lado, legitima a repressão policial, que já afeta cotidianamente a população das áreas mais pobres. De outro lado, estimula as correntes mais reacionárias da sociedade civil, perfeitamente representadas por programas de televisão como o já referido "Cidade Alerta" e derivados, sempre prontos a exigir a pena de morte e o aumento do aparato repressivo. É como se o sistema se beneficiasse da violência e até mesmo contasse com ela, a fim de justificar sua própria necessidade. A alternativa, portanto, é converter a violência cotidiana em força simbólica, por intermédio de uma produção cultural vista como modelo de organização comunitária. O ódio do cobrador voltava-se contra indivíduos e, por isso mesmo, tinha um alcance limitado. A dialética da marginalidade, pelo contrário, tem como alvo o dilema coletivo e se caracteriza por um esforço sério de interpretação dos mecanismos de exclusão social, pela primeira vez realizado pelos próprios excluídos. Em "Capitães da Areia", um dos primeiros livros a tratar da questão, Jorge Amado ainda podia acreditar na utopia da luta de classes, concluindo o romance com invejável segurança: "Porque a revolução é uma pátria e uma família". Mas a revolução deixou a todos órfãos, e a pátria trata a maior parte de seus filhos como bastardos. Por isso, uma transformação significativa ocorre no exato momento em que o filme "Cidade de Deus" disputa o Oscar: nas periferias e nas favelas, grupos se multiplicam e produzem um fenômeno novo na história cultural brasileira -a definição da própria imagem. Em "Rapaz Comum", os Racionais MC's sugerem: "Olha no espelho e tenta entender". Muitos dos manos que teimam em contrariar as estatísticas estão seguindo o conselho. João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj) e organizador de "As Máscaras da Mímesis" (Record) e "Interseções" (Imago). As hipóteses aqui apresentadas foram discutidas em cursos ministrados na Universidade da República (Montevidéu, Uruguai) e na Universidade de Wisconsin (em Madison, EUA). Este ensaio foi escrito graças a uma bolsa do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford (Inglaterra).
URL:: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/03/275292.shtml
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