segunda-feira, 24 de março de 2008

Contradições entre

nossa vida

e a consciência

cristã

A incompreensão da doutrina de Cristo por parte dos ho­mens tem causas diversas. Uma delas é que os homens crêem tê-la compreendido quando, como os fiéis da igreja, admiti­ram sua revelação sobrenatural, ou então quando, como os doutores, limitaram-se ao estudo dos fenómenos externos atra­vés dos quais ela se manifestou. Outra destas causas está na convicção de que ela é impraticável e pode ser substituída pe­la doutrina do amor à humanidade. Mas a principal destas cau­sas, a que é a fonte de todos os mal-entendidos, consiste na opinião de que o cristianismo é uma doutrina que se pode acei­tar ou rejeitar sem mudar de vida.
Os homens, habituados à ordem atual das coisas, à qual são afeiçoados e que receiam modificar, procuram entender a doutrina como um conjunto de revelações e regras, que se pode aceitar sem mudar de vida. Porém, o cristianismo não é apenas uma doutrina que dá normas para seguir, mas uma explicação nova do sentido da vida, uma definição da ação humana absolutamente diversa da antiga, porque a humani­dade entrou num novo período.
A vida da humanidade modifica-se, como a vida do indi­víduo, passando por diversas idades: cada idade tem, sobre a vida, um conceito correspondente, que os homens infalívelmente assimilam. Aqueles que não o assimilam com a razão assimilam-no inconscientemente. O que ocorre pela mudança do modo de encarar a vida pelos indivíduos, ocorre da mes­ma forma pela mudança do modo de encarar a vida pelos po­vos e por toda a humanidade. Se o pai de família continuasse a agir segundo o conceito de vida que ele tinha quando jo­vem, sua vida tornar-se-ia tão difícil que ele procuraria por si mesmo um outro conceito e, de bom grado, aceitaria aque­le que correspondesse a sua idade.
É isto o que hoje ocorre com a humanidade, no período de tempo que atravessamos, período de transição entre o con­ceito pagão de vida e o conceito cristão. O homem social de nosso tempo é levado pela própria vida à necessidade de re­jeitar o conceito pagão da vida, impróprio para a idade atual da humanidade, e a submeter-se às exigências da doutrina cris­tã, cujas verdades, por mais corruptas e mal-interpretadas que sejam, são, porém, por ele conhecidas e as únicas a lhe ofere­cer a solução para as contradições que o embaraçam.
Se o homem seguidor do conceito social considera as exi­gências do cristianismo estranhas e também perigosas, igualmen­te estranhas, incompreensíveis e perigosas pareciam ao selvagem das épocas antigas as exigências da doutrina social, quando ele ainda não as entendia e não podia prever suas consequências.
"É uma insensatez sacrificar a própria tranqüilidade e a própria vida pela defesa de algo incompreensível, intangível e convencional: a família, a raça, a pátria, e é sobretudo peri­goso colocar-se nas mãos de um poder estrangeiro'' — dizia ele.
Mas veio um tempo em que o selvagem compreendeu, ain­da que vagamente, o valor da vida social e de seu principal estímulo, a aprovação ou a reprovação social: a glória — e no qual, por outro lado, as dificuldades de sua vida pessoal tornaram-se tais que não podia continuar a acreditar no valor de seu antigo conceito da vida e precisou aceitar a doutrina social e a ela submeter-se.
O mesmo repete-se hoje com o homem social."É uma insensatez, diz ele, sacrificar a própria felicida­de, a da própria família e da própria pátria para satisfazer as exigências de algumas leis, superiores sim, mas incompatíveis com o sentimento melhor, mais natural, o amor a si próprio, à própria família, à própria raça, à própria pátria, e, é sobre­tudo perigoso abandonar a garantia da vida que assegura a ordem social" — continua ele a dizer.
Mas chega o tempo em que a vaga consciência da lei su­perior do amor a Deus e ao próximo e os sofrimentos resul­tantes das contradições da vida forçam o homem a rejeitar o conceito social e a aceitar o que lhe é proposto, que resolve todas as contradições e remedia todos os sofrimentos: o con­ceito cristão da vida. E este tempo chegou.
Nós que suportamos, por milhares de anos, a transição do conceito animal da vida ao conceito social, acreditamos que esta transição era então necessária, natural, enquanto aquela na qual nos encontramos há 1.800 anos nos parece arbitrária, artificial e assustadora. Mas nos parece assim somente porque a primei­ra transição já se completou e porque os costumes que fez nas­cer tornaram-se habituais, enquanto a transição presente ainda não terminou e devemos conscientemente levá-la adiante.
Longos séculos, milhares de anos passaram-se antes que o conceito social penetrasse na consciência dos homens. Ele passou por diversas formas e entrou hoje no domínio do in­consciente, por meio da herança, da educação e do hábito. Por isso nos parece natural. Mas, há cinco mil anos, parecia ao homem tão pouco natural e tão apavorante quanto lhes pa­rece, agora, a doutrina cristã, em seu verdadeiro sentido.
Parece-nos, hoje, que as exigências do cristianismo, a fra­ternidade universal, a supressão da nacionalidade, a supressão da propriedade e o tão estranho preceito da não-resistência ao mal com a violência são inaceitáveis. Mas pareciam, tam­bém, inaceitáveis, há milhares de anos, todas as exigências da vida social e mesmo as da vida doméstica, como a obrigação dos pais de nutrir os filhos e dos jovens de nutrir os velhos, ou mesmo a obrigação dos esposos de serem fiéis um ao outro. Mais estranhas ainda, até insensatas, pareciam as diversas exi­gências sociais, como a obrigação dos cidadãos de submeter-se ao poder, de pagar impostos, de guerrear em defesa da pá­tria etc. Todas estas exigências nos parecem, hoje, simples, com­preensíveis, naturais e nada vemos nelas de místico ou apavorante. Todavia, há cinco ou três mil anos pareciam inadmissíveis.

O conceito social servia de base às religiões porque, na época em que foi proposto aos homens, era absolutamente in­compreensível, místico e sobrenatural. Hoje, tendo atraves­sado esta fase da vida humana, compreendemos as causas racionais do agrupamento humano em famílias, comunidade, Estados; mas, na Antiguidade, a necessidade de tais reuniões foi apresentada em nome do sobrenatural e por ele confirmada.
As religiões patriarcais divinizavam a família, a raça, o povo; as religiões sociais divinizavam o rei, os Estados. Ainda hoje, a maior parte dos ignorantes — como nossos cam­poneses que chamam o czar de Deus terrestre — submetem-se às leis sociais, não segundo a consciência racionalizada de sua necessidade, não por terem uma ideia do Estado, mas por sen­timento religioso.
Do mesmo modo, hoje, a doutrina de Cristo aparece sob o aspecto de uma religião sobrenatural, enquanto, na verda­de, nada tem de misteriosa, mística ou sobrenatural. É sim­plesmente uma doutrina de vida, correspondente ao grau de desenvolvimento da idade em que se encontra a humanidade e que, em consequência, deve ser, por ela, aceita.
Virá o tempo — e já está vindo — no qual os princípios cristãos da vida — fraternidade, igualdade, comunhão de bens, não-resistência ao mal com a violência — parecerão tão sim­ples e tão naturais como hoje parecem os princípios da vida doméstica e social.(...) continua


*Retirado do livro:"O Reino de Deus Está em Vós" L.Tolstói (capítulo V)http://www.geocities.com/projetoperiferia2/o_reino_tolstoi_1-2.htm

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